Das duas ou três vezes que Lampião e seu bando vinham ao Cariri cearense anualmente, subiam a chapada do Araripe pela ladeira do Salvaterra, na divisa de Porteiras e Brejo Santo, para atingir o sítio Serra do Mato, nas suas escarpas, encravado entre Missão Velha e Barbalha. Ali eles encontravam o refrigério de que necessitavam.
Propaganda da Fundição Linard, década de 1940.
Lampião e seu bando ficavam hospedados na residência senhorial do celebérrimo coronel Antônio Joaquim de Santana, genitor do todo poderoso Dr. Juvêncio Joaquim de Santana, circunspecto magistrado que fora desde deputado estadual, como candidato do padre Cícero Romão Batista, a Secretário do Interior e Justiça do Governo Moreira da Rocha ("Moreirinha"), instalado no Ceará a partir de 1924, cuja seriedade estava acima de qualquer suspeita. Diante dele, todas as dúvidas se dirimiam, tal era a sua autoridade moral e jurídica. Começara a carreira de magistrado como promotor público de Jardim, logo que saíra da Faculdade de Direito. Ali foi também professor de História e Geografia, no famoso "Colégio 24 de Abril", do educador Francisco de Lima Botelho. Também, ficou tomado pelos encantos femininos da senhorita Beatriz Gondim, filha do coronel José Caminha de Anchieta Gondim, conhecido como coronel Dudé ou Daudet, boticário e matemático, chefe político local, com a qual, efetivamente, veio a se casar.
Antônio Linard |
O coronel José Caminha de Anchieta Gondim é pai do monsenhor Dermival de Anchieta Gondim, pároco da cidade de Brejo Santo desde a década de 1950.
O sitio Serra do Mato, em Missão Velha, ainda hoje é de difícil acesso, imagina nos tempos de Lampião! Só vai lá quem tem negócio. O coronel Antônio Joaquim de Santana era dono de todas as vidas, mandando com mão de ferro nas pessoas e na natureza, verdadeiro paraíso ecológico com muito verde, um engenho de rapadura, frutas e sombras que faziam daquela região um oásis.
Lampião ficava hospedado na própria residência do seu proprietário, enquanto os cangaceiros ocupavam um grande galpão, "batendo pernas" pelas cercanias, absolutamente tranquilos, inclusive bebendo pinga na vilazinha de Gameleira do Pau ou Gameleira de São Sebastião. Ali estavam com a vida que pediram a Deus, com paz, segurança e fartura, recuperando os quilos perdidos e dormindo sem sobressaltos!
A 200 metros da casa grande do sitio ficava a caudalosa Fonte da Pendência, uma das maiores dentre as 310 que a chapada do Araripe doa ao Cariri, cerca de 20 milhões de metros cúbicos de águas límpidas e puras por ano, sem precisar de energia elétrica, brotadas do bucho dadivoso da chapada, que tem 748 mil hectares de matas, separando ou unindo três Estados: Ceará, Pernambuco e Piauí, com 30 léguas de comprimento e 1O de largura, em média.
Usina Linard em Missão Velha/CE. |
Pois bem, os cangaceiros ficavam na fonte, banhando-se, fazendo a barba, lavando os seus animais, banqueteando-se com saborosos churrascos dos gordos bois que desciam da chapada para se dessedentarem nas fartas águas da fonte. No recanto bonançoso da Fonte da Pendência, os cangaceiros tinham o seu efêmero lazer.
Em uma das estadas de quase vilegiatura de Lampião e seu bando no sitio Serra do Mato, enquanto os cangaceiros se refrescavam na caudalosa Fonte da Pendência, absolutamente certos de que ninguém, nem mesmo o tenente Arlindo Rocha os molestaria, Lampião recebia e conversava na casa grande com o coronel Antônio Joaquim de Santana e seus numerosos amigos ''cangaceirófilos''.
Lá para as tantas, Lampião mostrou um régio presente que havia recebido: um estojo de madeira trabalhada, dentro do qual havia uma linda pistola de fabricação alemã, até então sem utilidade, porque ninguém sabia montá-la! Foi aí que o matreiro coronel Santana disse:
''- Lampião, eu tenho um amigo mecânico que sabe até fabricar, e muito mais montar a sua pistola: é o mecânico Antônio Linard, maquinista de Dãozinho Gonçalves, de Missão Nova. Vou mandar chamá-lo.”
Efetivamente, Antônio Linard chegou a cavalo e, em duas horas, já Lampião atirava com sua pistola! Foi aquele espanto!
Então, Antônio Linard observou que as armas dos cangaceiros estavam sujas, cheias de poeira e sem lubrificação. Durante todo dia, limpou e lubrificou o armamento do grupo. A seguir, Lampião pediu a conta e Antônio Linard respondeu que não era nada, uma simples cortesia.
Lampião, então, perguntou a Antônio Linard o que ele precisava para mudar de vida para melhor. Antônio Linard respondeu:
"- Um torno mecânico, porque todos os engenhos de rapadura do Cariri mandam suas moendas de ferro para serem torneadas em Fortaleza, apenas por falta de um torno mecânico, porque eu sei tornear."
Em uma das estadas de quase vilegiatura de Lampião e seu bando no sitio Serra do Mato, enquanto os cangaceiros se refrescavam na caudalosa Fonte da Pendência, absolutamente certos de que ninguém, nem mesmo o tenente Arlindo Rocha os molestaria, Lampião recebia e conversava na casa grande com o coronel Antônio Joaquim de Santana e seus numerosos amigos ''cangaceirófilos''.
Lá para as tantas, Lampião mostrou um régio presente que havia recebido: um estojo de madeira trabalhada, dentro do qual havia uma linda pistola de fabricação alemã, até então sem utilidade, porque ninguém sabia montá-la! Foi aí que o matreiro coronel Santana disse:
''- Lampião, eu tenho um amigo mecânico que sabe até fabricar, e muito mais montar a sua pistola: é o mecânico Antônio Linard, maquinista de Dãozinho Gonçalves, de Missão Nova. Vou mandar chamá-lo.”
Efetivamente, Antônio Linard chegou a cavalo e, em duas horas, já Lampião atirava com sua pistola! Foi aquele espanto!
Então, Antônio Linard observou que as armas dos cangaceiros estavam sujas, cheias de poeira e sem lubrificação. Durante todo dia, limpou e lubrificou o armamento do grupo. A seguir, Lampião pediu a conta e Antônio Linard respondeu que não era nada, uma simples cortesia.
Lampião, então, perguntou a Antônio Linard o que ele precisava para mudar de vida para melhor. Antônio Linard respondeu:
"- Um torno mecânico, porque todos os engenhos de rapadura do Cariri mandam suas moendas de ferro para serem torneadas em Fortaleza, apenas por falta de um torno mecânico, porque eu sei tornear."
O famoso "Torno de Lampião", ainda hoje em perfeito funcionamento. |
Nisto, em um gesto inopinado, Lampião tirou o seu chapelão e "correu a roda", como se diz vulgarmente, diante dos presentes, inclusive dos cangaceiros, angariando dinheiro para Antônio Linard que, com isto, pode comprar o primeiro torno da Fundição Linard, de Missão Velha, o que hoje inicia a fila de 1O ou 15 tornos daquela modelar siderurgia.
Antônio Linard era filho do francês Serafim Estevão Linard, que junto com operários de mais 50 nacionalidades, finalizaram em 1912 a estrada de ferro que percorria as margens dos rios Mamoré, na Bolívia e Madeira, em Rondônia. Construída para importar borracha dos nossos vizinhos, a estrada Madeira-Mamoré ficaria conhecida como a Ferrovia da Morte, pois nela pereceram quase 06 mil homens, vítimas de doenças tropicais e de condições inadequadas de trabalho.
Finalizada a construção da Madeira-Mamoré, Serafim procurou por uma região em que fervessem os caldeirões dos engenhos de rapadura, clientes certeiros de quem lida com ferro. Assim, ele chegou ao Ceará, indo instalar-se com a família em Santana do Cariri. Antônio Linard, filho do segundo casamento do francês, se sentiu na responsabilidade de sustentar a família quando o pai veio a falecer. No começo do século XX, quando Antônio era um jovem em busca de pôr em prática os ensinamentos do pai sobre a arte do ferro, Missão Velha era a cidade onde mais se plantava cana-de-açúcar – cerca de 300 engenhos produziam sem parar e, claro, não faltavam máquinas precisando de reparo.
A população de Missão Velha, hoje, é de pouco mais de 35 mil habitantes. Em 1933, quando Antônio abriu a primeira oficina mecânica para manutenção das máquinas dos quase mil engenhos do Cariri, a cidade era ainda menor e ele, então com 29 anos, pôde praticar tudo o que sabia sobre o funcionamento das moendas ¬– habilidade que desenvolveu apenas vendo-as girar, além de ter observado o pai em ação e de ter lido os livros de mecânica em francês e inglês que herdou dele.
Agora, a Fundição Linard é um orgulho para o Cariri, exportando máquinas agrícolas para a Índia e Canadá.
Deste episódio fica uma grande lição para a vida: ninguém é totalmente mau ou totalmente bom, dependendo das circunstâncias. Apesar de bandido feroz, lá no intimo de Lampião havia qualquer laivo de bondade, que podia aflorar facilmente, dependendo do momento e da sutileza da provocação.
Foi assim, quase acidentalmente, que surgiu a fecunda Fundição Linard de Missão Velha, uma benemérita do Cariri, hoje sob a direção de Maragton Linard (filho de Antônio Linard) e seus três filhos – Alônion, Amélia e Mona Alice.
Fontes bibliográficas:
- Cariri Cangaço, Coiteiros e Adjacências, Napoleão Tavares Neves, 2009;
- Cariri Revista, Histórias marcadas no ferro, por Pedro Philippe, em 19 de junho de 2015 - http://caririrevista.com.br/historias-marcadas-no-ferro/.
Fontes iconográficas:
- Site Cariri Cangaço: http://cariricangaco.blogspot.com.br/2010/09/familia-linard-e-o-torno-de-lampiao.html;
- Cariri Revista, Histórias marcadas no ferro, por Pedro Philippe, em 19 de junho de 2015 - http://caririrevista.com.br/historias-marcadas-no-ferro/;
- Heitor F. Macêdo.
A Munganga Promoção Cultural.
Antônio Linard era filho do francês Serafim Estevão Linard, que junto com operários de mais 50 nacionalidades, finalizaram em 1912 a estrada de ferro que percorria as margens dos rios Mamoré, na Bolívia e Madeira, em Rondônia. Construída para importar borracha dos nossos vizinhos, a estrada Madeira-Mamoré ficaria conhecida como a Ferrovia da Morte, pois nela pereceram quase 06 mil homens, vítimas de doenças tropicais e de condições inadequadas de trabalho.
Em alusão ao centenário do nascimento de Antônio Linard. |
Finalizada a construção da Madeira-Mamoré, Serafim procurou por uma região em que fervessem os caldeirões dos engenhos de rapadura, clientes certeiros de quem lida com ferro. Assim, ele chegou ao Ceará, indo instalar-se com a família em Santana do Cariri. Antônio Linard, filho do segundo casamento do francês, se sentiu na responsabilidade de sustentar a família quando o pai veio a falecer. No começo do século XX, quando Antônio era um jovem em busca de pôr em prática os ensinamentos do pai sobre a arte do ferro, Missão Velha era a cidade onde mais se plantava cana-de-açúcar – cerca de 300 engenhos produziam sem parar e, claro, não faltavam máquinas precisando de reparo.
A população de Missão Velha, hoje, é de pouco mais de 35 mil habitantes. Em 1933, quando Antônio abriu a primeira oficina mecânica para manutenção das máquinas dos quase mil engenhos do Cariri, a cidade era ainda menor e ele, então com 29 anos, pôde praticar tudo o que sabia sobre o funcionamento das moendas ¬– habilidade que desenvolveu apenas vendo-as girar, além de ter observado o pai em ação e de ter lido os livros de mecânica em francês e inglês que herdou dele.
Agora, a Fundição Linard é um orgulho para o Cariri, exportando máquinas agrícolas para a Índia e Canadá.
Interior da Usina Antônio Linard - Máquinas e Construções Técnicas S/A. |
Foi assim, quase acidentalmente, que surgiu a fecunda Fundição Linard de Missão Velha, uma benemérita do Cariri, hoje sob a direção de Maragton Linard (filho de Antônio Linard) e seus três filhos – Alônion, Amélia e Mona Alice.
Fontes bibliográficas:
- Cariri Cangaço, Coiteiros e Adjacências, Napoleão Tavares Neves, 2009;
- Cariri Revista, Histórias marcadas no ferro, por Pedro Philippe, em 19 de junho de 2015 - http://caririrevista.com.br/historias-marcadas-no-ferro/.
Fontes iconográficas:
- Site Cariri Cangaço: http://cariricangaco.blogspot.com.br/2010/09/familia-linard-e-o-torno-de-lampiao.html;
- Cariri Revista, Histórias marcadas no ferro, por Pedro Philippe, em 19 de junho de 2015 - http://caririrevista.com.br/historias-marcadas-no-ferro/;
- Heitor F. Macêdo.
A Munganga Promoção Cultural.
Nenhum comentário:
Postar um comentário