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quinta-feira, 24 de agosto de 2017

EM JARAMATAIA DE GARARU

 Por: Nertan Macedo


Tanta certeza tinha o doutor capitão Eronides de Carvalho que, mais cedo ou mais tarde, haveria de encontrar Virgulino Lampião que tratou de se preparar para não ser tomado de surpresa.

Oficial médico do Exército, mais tarde governador eleito de Sergipe, convalescia o doutor na fazenda Jaramataia, em terras de Gararu, quando o Capitão apresentou-lhe, no raiar do dia, a exemplo do que costumava fazer em casa do coronel Antônio Caixeiro. Era o doutor Eronides, filho do velho casal de fazendeiros de Borda da Mata.

Corria agosto, madrugada fresca, nos campos de Jaramataia. As últimas sombras da noite abandonavam o espaço, quando o médico foi despertado por um portador.

- Doutor Eronides, o capitão Virgulino Lampião mandava avisar que vem fazer uma visita ao senhor.

- Pois diga a ele que venha. Estou às ordens.

Eronides de Carvalho

Quinze minutos depois o Capitão apareceu em pessoa. Chegou montado, um cavalo magro, de bons arreios, o bando a pé atrás dele. O doutor aguardava-o no alpendre. 

Lampião demonstrou a distância e veio caminhando, sozinho, enquanto o grupo se detinha, cerca de uma vintena de cangaceiros. 

Estendeu a mão para o médico, dizendo:

- Bom dia, doutor. Eu sou o Capitão Virgulino Ferreira da Silva Lampião. Venho fazer uma visita de boa paz ao senhor.

O doutor sorriu ao cumprimento, indagando:

- Então como devo chamá-lo: capitão ou coronel? Porque eu também sou capitão e deve haver aqui uma hierarquia - como oficial do Exército nosso ser comandado pelo senhor...

Lampião compreendeu a malícia e replicou:

- Pois desde já o senhor está promovido a coronel.

- Assim está bem, Capitão. Mande o pessoal tomar chegada para um cafezinho e soltar o cavalo no pasto. 
  
A um gesto do chefe os homens foram se aproximando da casa grande de Jaramataia. Um deles era Ezequiel, irmão de Virgulino. Outro, seu cunhado Virgínio, homem de boas maneiras, cortês, o nariz afilado, moreno, bonito.

Ezequiel Ferreira "Ponto Fino II" e Virgínio Fortunato "Moderno"
em fotografia registrada por Eronides de Carvalho (1929).

 Corisco, o de cabelos alourados, traços duros, modos insolentes.

Cristino Gomes da Silva Cleto "Corisco"

No alpendre sentaram-se pelo chão, respeitosos, à espera da comida. Um permaneceu no pátio, rifle embalado, de sentinela.

O hospedeiro falou:

- Capitão, mande recolher aquele homem, que ninguém virá aqui nos incomodar.

Virgulino atendeu, o homem sumiu do pátio, vindo juntar-se aos companheiros que conversavam baixo para não incomodar o doutor e o capitão.

Na cabeceira da mesa, posta para o café matinal, disse o doutor Eronides:

- Eu tinha tanta certeza de que, um dia, o senhor ia me aparecer, que até me lembrei de comprar um presente para a ocasião.

Virgulino mostrou-se surpreso. Parece mesmo não acreditar. 

O doutor chamou a empregada da casa, que tremia como vara verde. Ordenando-lhe:

- Vá buscar os presentes do capitão Virgulino.

Dentro em pouco a moça retornava, trazendo um embrulho. O doutor desatou-o. Continha uma garrafa térmica e um queijo holandês.

E continuou:

- Lembrei-me de comprar essa garrafa em que o senhor pode conduzir café quente, para beber a qualquer hora do dia e da noite. E este queijo estrangeiro, muito caro e bom, que trouxe de Aracaju...

O visitante sorriu, enfim, satisfeito, constatando a verdade do que lhe dissera o médico. Agradeceu, solícito.

A essa altura um dos cangaceiros gemia, a um canto do alpendre.

- Que tem esse homem? perguntou o anfitrião.

- Dor de dente - informou Lampião, lacônico. - Há dias que não pode dormir.

Voltou-se o médico, novamente, para a empregada da casa:

- Vá buscar uma aspirina e um copo d’água e dê a esse homem. 

A moça voltou ao interior da casa e, reaparecendo no alpendre, com um comprimido e um copo d’água, passou-os ao cangaceiro doente.

O médico pode então sentir a disciplina e a autoridade de Virgulino. Um lado do rosto inchado, o cabra ficou segurando o remédio e a água, sem coragem para ingeri-los. Seus olhos, desconfiados, inquiridores, procuravam ansiosos, os do Capitão. Quando com os dele se cruzaram, um leve aceno de cabeça fez sentir ao cangaceiro que podia tomar a "receita", o que logo foi feito.

Depois da comida o Capitão, a pedido do dono da casa, consentiu em deixar-se fotografar, só e acompanhado. Prometeu o doutor enviar-lhe as fotografias de presente, quando ficassem prontas.

- Coronel, fique certo que eu mando cobrar estas poses ao senhor - disse-lhe Lampião.

Fotografia registrada por Eronides de Carvalho na Fazenda Jaramataia em Gararu/SE.

E solicitou em "particular" ao médico. Este já esperava pelo pedido e se preparava convenientemente. Indicou o seu quarto de dormir, fechando-se, ambos, nesse cômodo. Por medida de precaução, o doutor pusera a sua parabellum embaixo do colchão, nos pés da cama, para qualquer eventualidade. Sentaram-se lado a lado, no leito, com a mão direita apoiada no colchão, em cima do revólver. 

- Foi aí que eu notei a transformação - contou, mais tarde, o doutor. - As feições do visitante cordial mudaram por completo. De um momento para o outro, aquela natureza estranha se transformou. Era, agora, outro homem, arrogante, grosseiro, autoritário, mais dono do que hóspede.

Falando quase num sussurro, como era de hábito. Lampião indagou:

- O senhor tem arma de fogo?

- Tenho e da boa, respondeu Eronides silabando a resposta. 

- É igual a esta? - insistiu, puxando a Parabellum.

A arma, todavia, não saiu do coldre. O Capitão fez uma segunda tentativa, mas inutilmente.

- Está enferrujada, ponderou o médico.

- Mas temos força - revidou Virgulino e, num gesto brusco e violento, arrancou a Parabellum do estojo de couro que a detinha.

Calmamente, o doutor pôs a mão sobre a do Capitão, que sustinha a arma, comprimindo o botão que liberou o pente de balas que saltou ao colo de Virgulino. Eronides apanhou-o, guardando-o no próprio bolso, enquanto a mão, de novo, procurava com naturalidade disfarçada os pés da cama, onde ocultava a sua pistola. 

Desarmara o cangaceiro, este então pediu-lhe:

- Doutor, se as nossas armas são iguais, o senhor deve ter munição em casa. Estou desmuniciado e preciso de bala. O senhor vai me dar um pouco da sua.

- De fato, replicou Eronides, tenho uma caixa de munição em casa e posso cedê-la ao senhor.

Levantou-se. Foi a um armário próximo e retirou de lá uma caixa. Abriu-a sobre a cama e retirou um punhado de balas, que passou a Virgulino. Tirou um segundo punhado e quando apanhou o terceiro, quase esvaziando o conteúdo, Lampião obstou-o:

Basta, doutor. O senhor está morando nestas brenhas e precisa tanto quanto eu. Vamos dividir igualmente a munição - e ele próprio repartiu a caixa, após o que retornou ao alpendre para bater em retirada.

Na hora da despedida, o doutor fez-lhe presente de um par de perneiras do Exército.

- Na qualidade de Capitão, o senhor não pode andar sem perneiras, comentou Eronides.

- Não esqueça as fotografias, lembrou Virgulino. - Qualquer dia desse eu mando buscá-las.

Tempos depois, estava o doutor Eronides na fazenda Cajueiro, descansando numa espreguiçadeira, quando um desconhecido dele se aproximou, transmitindo-lhe o seguinte recado:

- O Capitão Virgulino mandou buscar as poses da Jaramataia.

- Diga ao Capitão que eu não mando agora; Entrego depois, no lugar onde ele indicar.

- Pois pode mandar coronel para o Porto da Folha, entregar na venda que fica na entrada da rua.

Basta chegar ao balcão e dizer – China!

Mais tarde, o doutor chamou um dos seus vaqueiros, fazendo-o portador das fotografias.

Ensinou-lhe a senha indicada.

O vaqueiro foi a Porto da Folha, chegou à bodega, onde se achavam alguns fregueses, gritando:

- China!

O dono da mercadoria fez-lhe um sinal, levando-o, incontinenti, a um quarto no interior da casa. Ali recebeu das mãos do portador as fotografias tiradas em Jaramataia.

Um dia o bando de Lampião matou um vaqueiro do doutor Eronides, em Nossa Senhora da Glória. Num encontro com o Capitão, lamentou o acontecido de modo amargo:

- Seus homens mataram o meu vaqueiro, Capitão. Deram-me um prejuízo de quinze contos de réis, quantia que o homem levava, da venda de um gado nas Alagoas.

Lampião ouviu. A seguir justificou-se:

- Aquele vaqueiro não prestava, coronel, nem pra mim nem pro senhor. Falava demais!

Dava conta de todos os meus passos pela sua propriedade. Vivia batendo com os dentes na feira.

Quanto ao dinheiro, pode ter certeza de que não me apoderei dele. Deve estar com o defunto...

E mandou alguns dos seus homens abrir a cova do vaqueiro em cujo bolso interno, do paletó, foram encontrados, intactos, os quinze contos da venda do gado.

Pediu, mais de uma vez, montarias arreadas ao doutor Eronides e as devolveu depois, sem faltar uma corda, uma cela, um estribo.

Doutra feita, o médico aconselhou Virgulino a largar a vida erradia do cangaço.

- Não posso, coronel, é tarde demais. Em todo lugar querem me destruir.

Muitas vezes o Capitão voltou a pedir munição ao doutor. Não vinha recebê-la pessoalmente.

Determinava o lugar onde devia ser enterrada. À noite ia buscá-la, com a sua gente.

Aproximava-se do fim.

Vez por outra, nas suas andanças por Sergipe, acoitava-se nas locas de pedra à margem do São Francisco. Passava ali dias e dias, alquebrado, vinte anos de viver perseguido pelas tocas do sertão. Tinha quarenta anos de vida, mais da metade passada no cangaço.

Num dos seus derradeiros encontros com o doutor Eronides, que se achava doente, Lampião lhe disse:

- Vou mandar Maria Bonita tratar do senhor. Ela tem mãos de fada.

Morria, pouco depois, ao lado da amante, na Grota do Angico. 


Fonte: Capitão Virgulino Ferreira “Lampião”
Autor: Nertan Macêdo (Edições Revista “O Cruzeiro” - Rio de Janeiro (1970).

Texto extraído do Blog do Mendes e Mendes.

Geraldo Antônio de Souza Júnior


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