EM JARAMATAIA DE GARARU
Tanta certeza
tinha o doutor capitão Eronides de Carvalho que, mais cedo ou mais tarde,
haveria de encontrar Virgulino Lampião que tratou de se preparar para não ser
tomado de surpresa.
Oficial médico
do Exército, mais tarde governador eleito de Sergipe, convalescia o doutor na
fazenda Jaramataia, em terras de Gararu, quando o Capitão apresentou-lhe, no
raiar do dia, a exemplo do que costumava fazer em casa do coronel Antônio
Caixeiro. Era o doutor Eronides, filho do velho casal de fazendeiros de Borda
da Mata.
Corria agosto,
madrugada fresca, nos campos de Jaramataia. As últimas sombras da noite
abandonavam o espaço, quando o médico foi despertado por um portador.
- Doutor Eronides,
o capitão Virgulino Lampião mandava avisar que vem fazer uma visita ao senhor.
- Pois diga a
ele que venha. Estou às ordens.
Eronides de Carvalho |
Quinze minutos
depois o Capitão apareceu em pessoa. Chegou montado, um cavalo magro, de bons
arreios, o bando a pé atrás dele. O doutor aguardava-o no alpendre.
Lampião
demonstrou a distância e veio caminhando, sozinho, enquanto o grupo se detinha,
cerca de uma vintena de cangaceiros.
Estendeu a mão
para o médico, dizendo:
- Bom dia,
doutor. Eu sou o Capitão Virgulino Ferreira da Silva Lampião. Venho fazer uma
visita de boa paz ao senhor.
O doutor sorriu
ao cumprimento, indagando:
- Então como
devo chamá-lo: capitão ou coronel? Porque eu também sou capitão e deve haver
aqui uma hierarquia - como oficial do Exército nosso ser comandado pelo
senhor...
Lampião
compreendeu a malícia e replicou:
- Pois desde já
o senhor está promovido a coronel.
- Assim está
bem, Capitão. Mande o pessoal tomar chegada para um cafezinho e soltar o cavalo
no pasto.
A
um gesto do chefe os homens foram se aproximando da casa grande
de Jaramataia. Um deles era Ezequiel, irmão de Virgulino. Outro, seu
cunhado Virgínio, homem de boas maneiras, cortês, o nariz afilado, moreno,
bonito.
Ezequiel Ferreira "Ponto Fino II" e Virgínio Fortunato "Moderno" em fotografia registrada por Eronides de Carvalho (1929). |
Cristino Gomes da Silva Cleto "Corisco" |
No alpendre
sentaram-se pelo chão, respeitosos, à espera da comida. Um permaneceu no pátio,
rifle embalado, de sentinela.
O hospedeiro
falou:
- Capitão, mande
recolher aquele homem, que ninguém virá aqui nos incomodar.
Virgulino
atendeu, o homem sumiu do pátio, vindo juntar-se aos companheiros que
conversavam baixo para não incomodar o doutor e o capitão.
Na cabeceira da
mesa, posta para o café matinal, disse o doutor Eronides:
- Eu tinha tanta
certeza de que, um dia, o senhor ia me aparecer, que até me lembrei de comprar
um presente para a ocasião.
Virgulino mostrou-se
surpreso. Parece mesmo não acreditar.
O doutor chamou
a empregada da casa, que tremia como vara verde. Ordenando-lhe:
- Vá buscar os
presentes do capitão Virgulino.
Dentro em pouco
a moça retornava, trazendo um embrulho. O doutor desatou-o. Continha uma
garrafa térmica e um queijo holandês.
E continuou:
- Lembrei-me de
comprar essa garrafa em que o senhor pode conduzir café quente, para beber a
qualquer hora do dia e da noite. E este queijo estrangeiro, muito caro e bom,
que trouxe de Aracaju...
O visitante
sorriu, enfim, satisfeito, constatando a verdade do que lhe dissera o médico.
Agradeceu, solícito.
A essa altura um
dos cangaceiros gemia, a um canto do alpendre.
- Que tem esse
homem? perguntou o anfitrião.
- Dor de dente -
informou Lampião, lacônico. - Há dias que não pode dormir.
Voltou-se o
médico, novamente, para a empregada da casa:
- Vá buscar uma
aspirina e um copo d’água e dê a esse homem.
A moça voltou ao
interior da casa e, reaparecendo no alpendre, com um comprimido e um copo d’água,
passou-os ao cangaceiro doente.
O médico pode
então sentir a disciplina e a autoridade de Virgulino. Um lado do rosto
inchado, o cabra ficou segurando o remédio e a água, sem coragem para
ingeri-los. Seus olhos, desconfiados, inquiridores, procuravam ansiosos, os do
Capitão. Quando com os dele se cruzaram, um leve aceno de cabeça fez
sentir ao cangaceiro que podia tomar a "receita", o que logo foi
feito.
Depois da comida o Capitão, a pedido do dono da casa, consentiu em deixar-se
fotografar, só e acompanhado. Prometeu o doutor enviar-lhe as fotografias de
presente, quando ficassem prontas.
- Coronel, fique
certo que eu mando cobrar estas poses ao senhor - disse-lhe Lampião.
Fotografia registrada por Eronides de Carvalho na Fazenda Jaramataia em Gararu/SE. |
E solicitou em
"particular" ao médico. Este já esperava pelo pedido e se preparava
convenientemente. Indicou o seu quarto de dormir, fechando-se, ambos, nesse
cômodo. Por medida de precaução, o doutor pusera a sua parabellum
embaixo do colchão, nos pés da cama, para qualquer eventualidade. Sentaram-se
lado a lado, no leito, com a mão direita apoiada no colchão, em cima do
revólver.
- Foi aí que eu
notei a transformação - contou, mais tarde, o doutor. - As feições do visitante
cordial mudaram por completo. De um momento para o outro, aquela natureza
estranha se transformou. Era, agora, outro homem, arrogante, grosseiro,
autoritário, mais dono do que hóspede.
Falando quase
num sussurro, como era de hábito. Lampião indagou:
- O senhor tem
arma de fogo?
- Tenho e da
boa, respondeu Eronides silabando a resposta.
- É igual a
esta? - insistiu, puxando a Parabellum.
A arma, todavia,
não saiu do coldre. O Capitão fez uma segunda tentativa, mas inutilmente.
- Está
enferrujada, ponderou o médico.
- Mas temos
força - revidou Virgulino e, num gesto brusco e violento, arrancou a Parabellum
do estojo de couro que a detinha.
Calmamente, o
doutor pôs a mão sobre a do Capitão, que sustinha a arma, comprimindo o botão
que liberou o pente de balas que saltou ao colo de Virgulino. Eronides apanhou-o,
guardando-o no próprio bolso, enquanto a mão, de novo, procurava com
naturalidade disfarçada os pés da cama, onde ocultava a sua pistola.
Desarmara o
cangaceiro, este então pediu-lhe:
- Doutor, se as
nossas armas são iguais, o senhor deve ter munição em casa. Estou desmuniciado
e preciso de bala. O senhor vai me dar um pouco da sua.
- De fato,
replicou Eronides, tenho uma caixa de munição em casa e posso cedê-la ao
senhor.
Levantou-se. Foi
a um armário próximo e retirou de lá uma caixa. Abriu-a sobre a cama e retirou
um punhado de balas, que passou a Virgulino. Tirou um segundo punhado e quando
apanhou o terceiro, quase esvaziando o conteúdo, Lampião obstou-o:
Basta, doutor. O
senhor está morando nestas brenhas e precisa tanto quanto eu. Vamos dividir
igualmente a munição - e ele próprio repartiu a caixa, após o que retornou ao
alpendre para bater em retirada.
Na hora da
despedida, o doutor fez-lhe presente de um par de perneiras do Exército.
- Na qualidade
de Capitão, o senhor não pode andar sem perneiras, comentou Eronides.
- Não esqueça as
fotografias, lembrou Virgulino. - Qualquer dia desse eu mando buscá-las.
Tempos depois,
estava o doutor Eronides na fazenda Cajueiro, descansando numa espreguiçadeira,
quando um desconhecido dele se aproximou, transmitindo-lhe o seguinte recado:
- O Capitão
Virgulino mandou buscar as poses da Jaramataia.
- Diga ao
Capitão que eu não mando agora; Entrego depois, no lugar onde ele indicar.
- Pois pode
mandar coronel para o Porto da Folha, entregar na venda que fica na entrada da
rua.
Basta chegar ao
balcão e dizer – China!
Mais tarde, o
doutor chamou um dos seus vaqueiros, fazendo-o portador das fotografias.
Ensinou-lhe a
senha indicada.
O vaqueiro foi a
Porto da Folha, chegou à bodega, onde se achavam alguns fregueses, gritando:
- China!
O dono da
mercadoria fez-lhe um sinal, levando-o, incontinenti, a um quarto no interior
da casa. Ali recebeu das mãos do portador as fotografias tiradas em Jaramataia.
Um dia o bando
de Lampião matou um vaqueiro do doutor Eronides, em Nossa Senhora da Glória.
Num encontro com o Capitão, lamentou o acontecido de modo amargo:
- Seus homens
mataram o meu vaqueiro, Capitão. Deram-me um prejuízo de quinze contos de réis,
quantia que o homem levava, da venda de um gado nas Alagoas.
Lampião ouviu. A
seguir justificou-se:
- Aquele
vaqueiro não prestava, coronel, nem pra mim nem pro senhor. Falava demais!
Dava conta de
todos os meus passos pela sua propriedade. Vivia batendo com os dentes na
feira.
Quanto ao
dinheiro, pode ter certeza de que não me apoderei dele. Deve estar com o
defunto...
E mandou alguns
dos seus homens abrir a cova do vaqueiro em cujo bolso interno, do paletó,
foram encontrados, intactos, os quinze contos da venda do gado.
Pediu, mais de
uma vez, montarias arreadas ao doutor Eronides e as devolveu depois, sem faltar
uma corda, uma cela, um estribo.
Doutra feita, o
médico aconselhou Virgulino a largar a vida erradia do cangaço.
- Não posso,
coronel, é tarde demais. Em todo lugar querem me destruir.
Muitas vezes o
Capitão voltou a pedir munição ao doutor. Não vinha recebê-la pessoalmente.
Determinava o
lugar onde devia ser enterrada. À noite ia buscá-la, com a sua gente.
Aproximava-se do
fim.
Vez por outra,
nas suas andanças por Sergipe, acoitava-se nas locas de pedra à margem do São
Francisco. Passava ali dias e dias, alquebrado, vinte anos de viver perseguido
pelas tocas do sertão. Tinha quarenta anos de vida, mais da metade passada no
cangaço.
Num dos seus
derradeiros encontros com o doutor Eronides, que se achava doente, Lampião lhe
disse:
- Vou mandar
Maria Bonita tratar do senhor. Ela tem mãos de fada.
Morria, pouco depois,
ao lado da amante, na Grota do Angico.
Fonte: Capitão
Virgulino Ferreira “Lampião”
Autor: Nertan
Macêdo (Edições Revista “O Cruzeiro” - Rio de Janeiro (1970).
Texto extraído
do Blog do Mendes e Mendes.
Geraldo Antônio
de Souza Júnior
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